sexta-feira, 1 de junho de 2012

Histórias Reais Inventadas por Mim

Escreveu, não apagou, o pau...
Todos temos vícios, hábitos, manias que de uma forma geral não nos incomoda, mas pode afetar outras pessoas. O curioso é que a maior parte destes vícios são consequências de uma má-educação, ou apenas a total falta de consideração pelos outros. Bem, pelo menos era isso que Fernando pensava.
Fernando dava aula em uma faculdade, de segunda à sexta, todas as noites. Como era em um andar com muito movimento e aulas em todos os horários do dia, ao chegar, a sala estava sempre um caos. Cadeiras espalhadas pela sala, papel no chão e o quadro completamente preenchido por exercícios, conteúdos, gráficos etc.
Nas primeiras semanas até que ele insistiu em arrumar as carteiras antes de liberar a entrada dos alunos, mas facilmente foi vencido. Era evidente que aquele esforço em nada adiantava, pois, assim que a boiada entrava, tudo voltava a ficar como era antes. Carteiras eram arrastadas para as meninas ficarem juntas, outras viradas para os rapazes colocarem as mochilas, quando não os próprios pés. Desistiu! A turma que antes esperava sua autorização no corredor passou a entrar com ele.
A quantidade de folhas de caderno, guardanapos, até latinha de refrigerante no chão era vergonhosa, mas nisso ele nunca interferiu diretamente. Apenas tentava conscientizar a própria turma para que não fizesse o mesmo. Sempre que iniciava uma aula, a mesma frase era dita:
– Senhores, agora que estamos no chiqueiro, vamos provar que somos capazes de não piorar ainda mais essa imundice!
De fato, suas turmas eram as poucas que usavam exclusivamente a lixeira para despejar qualquer tipo de resíduo.
Já o quadro preenchido foi um fato polêmico. No início, não o incomodava. Nem um pouco! Ele até gostava. Antes de começar a apagá-lo, ficava parado admirando. Observava a técnica da escrita do professor, o conteúdo, os exercícios. Chegava a desperdiçar quase cinco minutos nesse processo.
Com o tempo foi ficando cansativo. Principalmente quando era o quadro do professor Cequeira. Ele era responsável pela disciplina Física II. Seu quadro era quase que inteiramente preenchido. Usava canetas de todas as cores. Na hora de apagar ficava um borrão de vermelho, com azul e preto. Era necessária muita força no apagador para que o quadro voltasse a ficar o mais perto possível de cinza claro, pois o branco já não era mais viável. O que Fernando não entendia era por qual motivo o professor das disciplinas se negava a apagar o quadro ao término da aula. São dois minutos! E ainda pode pedir para um puxa-saco qualquer fazer isso. Enfim, essa rotina começou a irritá-lo seriamente. A sua primeira atitude foi colocar na parede da sala, ao lado do quadro, um bilhete: “Caro professor, favor apagar o quadro ao final da aula. O colega do turno seguinte agradece.” Mesmo assim, não surtiu efeito. Todos os dias o quadro permanecia “sujo”.
Com duas semanas de bilhete na parede e nenhuma mudança, Fernando reescreveu o mesmo bilhete, mas desta vez com o tamanho da fonte dobrado e usando negrito. Agora eram dois bilhetes na parede, o original e o mais chamativo. Resultado: nenhum.
Fernando se sentia impotente com aquilo e para piorar, chegava em um horário no qual o professor anterior já tinha saído de sala. Era sempre uma diferença de trinta minutos que não podia ser diminuída, pois saía de outra instituição distante.
Certo dia uma aluna veio falar com Fernando. Disse que chegou mais cedo que o normal e encontrou com o outro professor ainda em sala. Também contou que esperou que saísse de sala e falou para ele:
– Poxa, mestre, todo dia o meu professor precisa apagar o seu quadro – mas foi interrompida pelo tal professor que disse.
– Senhorita, fala para o seu professor parar de melindres. É só um quadro para apagar – daí ele virou de costas e foi embora.
Pelo dia da semana, Fernando não teve dúvidas, era o Cequeira que destratou sua aluna. Ele sabia que o tal professor tinha uma fama de lidar mal com os alunos, mas não imaginava algo do tipo. A fama dele era principalmente de “crescer” como professor e fazer covardias e terror psicológicos nos alunos, mas que fora do campus voltava a ser um carneiro inofensivo. Fernando então tentou acalentar a aluna que foi solidária a luta dele:
– Relaxa – disse ele com uma das mãos em seu ombro. – Você fez o certo e ele foi um escroto. Agora é pessoal!
No mesmo dia fez um novo cartaz e colocou acima dos outros dois, mas com a fonte maior ainda: “Prezado professor, qual o motivo para não apagar o quadro que foi escrito por você mesmo? Deficiência motora ou mental?”. O tal bilhete arrancou gargalhadas dos alunos.
Nos dias seguintes ele passou a se deparar com o quadro limpo. Quero dizer, sem conteúdo, pois limpo mesmo ele não ficava mais. Restava esperar passar uma semana exata para ver como Cequeira se comportaria.
Chegado o dia, ele entra na sala e o quadro está mais preenchido que o habitual. Muita coisa escrita, desenhada, rabiscada. Fernando ficou possesso. Encarou o quadro por mais alguns minutos e, antes de qualquer coisa, virou apenas o rosto para turma com uma expressão de estupefato. E então a tal aluna fala:
– Fernando! O tal professor ficou escrevendo no quadro enquanto a turma dele saía de sala e, quando me viu, disse para avisar a você que lugar de palhaço era no circo e de fresco é na casa da vovó.
Agora a coisa ficara feia. Fernando anunciou para a turma que todos na semana seguinte chegassem uma hora mais cedo, pois presenciariam o que ele iria fazer com o tal professor. A turma é claro vibrou. Programa do Ratinho ao vivo na faculdade. Quem iria perder? Exclamar para o colega ao lado que o professor era foda virou lugar comum naquele momento.
Passada uma semana, Fernando sai bem mais cedo da outra instituição e vai o mais rápido possível. Ele ainda não tem a menor ideia do que vai fazer. Acredita que em horas como essas, a decisão deve ser feita após a primeira resposta do oponente. Chegando à faculdade, o estacionamento está lotado. Nenhuma vaga no quarteirão. Dá mais uma volta e acha uma vaga. O flanelinha pede dez real (sic), ele diz de forma ríspida que não vai pagar. Sua irritação começava a transparecer. O flanelinha dá um soco nas costelas de Fernando e pega o dinheiro do seu bolso enquanto ele tenta se recompor. Fernando não reage. Não há tempo para isso. Apenas diz ao flanelinha que nunca mais apareça naquela rua, pois teria revide. Chegando ao corredor da sala, a turma toda está a sua espera. Quando o avistam começam com o frenesi: “Lá vem ele!” “É agora” “Vai lá, Fernandão!”. Ele sorri e pede que todos entrem na sala. A turma imediatamente invade a aula de Cequeira que fica pasmo olhando aquele mar de pessoas entrando e se posicionando como um teatro de arena. Após o último aluno entrar, Fernando aparece na porta e Cequeira fica da cor que o quadro deveria ser. Sua testa vira uma tampa de chaleira de tanto suor.
– Vou perguntar educadamente – diz Fernando enquanto entra e se aproxima de Cequeira que permanece sentado e petrificado. – Qual o seu problema em apagar o maldito quadro que você escreveu?
– Bem – ele faz uma pausa que é meio falta de ar, meio falta de coragem. – Quando eu chego também está escrito e tenho o mesmo trabalho.
– E o que eu tenho a ver com isso? – Pergunta Fernando.
– Ora – ele faz mais uma pausa nervosa. – Estou apenas repassando o problema para frente. É assim que as coisas funcionam.
– Então é assim que as coisas funcionam – Fernando ironiza. – Cada um tem um problema, mas ao invés de resolver, passa para o próximo?
– É – responde Cequeira quase gaguejando monossílabo.
– Faremos assim então – ele se aproxima ao máximo de Cequeira. – Acabei de levar uma porrada e me levaram cinquenta reais do bolso. O que prefere? Que te dê um soco e depois me dê o dinheiro, ou vai pegando o dinheiro enquanto te dou uma porrada?
– Peraí – fala Cequeira tentando se afastar com as mãos levantadas.
– Olha só, eu tive esse problema hoje e estou apenas passando para frente conforme a sua teoria. Como faremos?

Cequeira se levanta em silêncio, apaga todo o quadro, pede desculpas e sai de sala. Os alunos de ambas as turmas vão ao delírio. É possível ouvir seus gritos dos outros blocos. A história se espalhou em uma velocidade absurda, fazendo com que as coordenações comunicassem a todos os professores da regra de apagar o quadro ao final da aula. Cequeira pediu transferência para fugir da vergonha, mas no outro campus descobriram o que tinha acontecido com ele, fazendo com que pedisse licença. Nunca mais deu aulas. Já Fernando virou uma referência como professor mais doido da casa. A coordenação não concordava muito com essa fama, mas a garotada gostava dele, então acabou ficando.