quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Idiota, hormonal e clichê

Canelinha
Eu sei que vocês vão me recriminar por isto, mas tenho os meus motivos. Faz parte do senso comum que falar mal de outra pessoa é algo deselegante e recriminável. Eu discordo. Ainda mais depois de saber que Ariano Suassuna também pensava igual a mim. Ele dizia que o problema não era falar mal da pessoa, mas fazer isso na presença dela. Afinal, criar-se-ia um clima desagradável. Caso a pessoa não estivesse por perto para ouvir, daí, sim, podia falar mal à vontade. Até porque é algo revigorante. Palavras dele. E, agora, minhas também.
O que irei falar é sobre o Canelinha. Provavelmente vocês não o conheçam, mas eu sim. Convivo com ele desde os oito anos de idade, época em que ele recebeu esse apelido. Tenho tantos anos de amizade com o Canelinha que posso dizer com propriedade que ele é um idiota.
Seu nome é Ricardo. No ano em que nos conhecemos, nossos pais disputavam uma pelada toda terça-feira à noite em um campo de futebol na região da Penha Circular. Nossos pais costumavam nos levar e, enquanto jogavam futebol, ficávamos do lado de fora chutando bola um para o outro. Eventualmente, parávamos o que estávamos fazendo para ficar no alambrado com os outros adultos da “de fora” assistindo à partida. Como de hábito, esses adultos adoravam incendiar a partida com gritos de ordem do tipo “Vai!”, “Lança!”, “Chuta!” e por aí ia. Em outros momentos, para desconcentrar os adversários, eles gritavam coisas como “Pega!”, “Quebra!”, “Dá no meio dele!”, dentre outros incentivos que deveriam ser tolerados em debates políticos na televisão. Canelinha, ainda Ricardo na época, curtia esses momentos e gritava junto com os outros adultos. Como se tratava de uma criança de oito anos, ele era muito fofinho e ingênuo, logo, tudo que ele gritava era “Na canelinha! Na canelinha dele!” e assim surgiu o apelido.
Com o tempo, Canelinha foi deixando de ser fofinho e ingênuo para então começar a dar sinais de ser idiota. Aos dez anos, já colecionávamos álbuns de figurinhas. Contudo, para o Canelinha, a óbvia lógica implícita naquela tarefa parecia complexa. Ele ignorava números e as coleções. Em sua cabeça, fazia total sentido ir colando as primeiras figurinhas nas primeiras páginas conforme ia comprando. Quando a primeira página estivesse completa, ele finalmente começava a colar as novas figurinhas que chegavam na segunda página e assim por diante. O resultado era caótico, absurdo e, ainda assim, ele parecia ser incapaz de perceber que algo não fazia sentido ali. Inclusive quando tinha em seu álbum da Copa do Mundo de 1990 uma seleção da União Soviética com três louros, dois ruivos, dois orientais, quatro goleiros, três negros, um Homem-Aranha e uma Ferrari. Como tinha dito, sequer as coleções ele respeitava.
Já no início da segunda fase do ensino fundamental, época que era chamada de ginásio também, Canelinha foi se aprofundando na arte de ser idiota. Ele precisou faltar por uma semana à escola por um motivo qualquer e, na semana seguinte, quando voltou, pegou várias matérias pela metade. Uma delas foi história, que estava falando sobre a Segunda Guerra Mundial. A parte que ele ouviu foi a que dizia sobre as invasões do exército alemão e a liderança de Hitler. Canelinha ficou fascinado com aquela personalidade. Achou impressionante a eloquência do fuhrer e sua capacidade de mobilizar uma população inteira em prol de sua luta. Para ele, Hitler era um líder nato que deveria ser copiado pelos principais chefes de estado, técnicos de esportes e gestores de grandes corporações. Eu só soube disso no mesmo dia que o restante da nossa turma e professora de história, senhora Creuza, também souberam. Em uma apresentação valendo ponto, ele desenvolveu um longo texto sobre suas convicções e o leu na frente de todos. Ao final, com a turma ainda boquiaberta, a senhora Creuza disse que talvez não fosse uma boa ideia que, particularmente, ele idolatrasse o líder alemão. Quando questionado pelo Canelinha por qual motivo não deveria fazê-lo, a senhora Creuza respondeu dizendo “Porque provavelmente, pelo seu sobrenome Schultzartz, você deve ser judeu.”. Canelinha então se calou e achou melhor pesquisar sobre as aulas que tinha faltado.
Já no meio da adolescência, uma das coisas que mais afligia o Canelinha era a sensação de se sentir um estranho fora do ninho. Como se isso fosse exclusivo dele, não é, não? De qualquer forma, a sua sensação de exclusão era baseada em um motivo idiota, como era de se esperar. Ele achava que não tinha uma risada que desse uma personalidade a ele. Considerava sua risada muito comum e, por isso, não se destacava dentre os demais. Ainda mais quando o Mauricinho estava por perto. O Mauricinho era um dos maiores contadores de piadas do colégio. Bastava ele parar em uma roda de pessoas e as gargalhadas eram ininterruptas. Ocasionalmente, quando estava por perto, o Canelinha se sentia constrangido de rir, mesmo que fosse uma piada sensacional. Por isso, decidiu testar várias risadas até achar uma que combinasse com sua personalidade. Começou com uma risada com os dentes serrados escapando o ar. Depois, foram tentativas com risadas de bocas escancaradas. As que usavam as vogais u e o foram rapidamente descartadas porque considerava que harmonizavam melhor vilões de desenho animado. Tentou imitar risadas famosas, dentre elas a do Eddie Murphy. Mas não a risada original do ator, mas a da dublagem da Hebert Richards. Depois de tanto trabalho, achou a sua risada. Ela revezava as vogais a e i em uma frequência tremida. Finalmente, se sentindo identificado com o resultado final, Canelinha mal esperava a hora para estrear sua risada. Foi quando viu uma rodinha com o Mauricinho no meio falando. Lá vem uma piada das boas, pensou o Canelinha. Ele foi se aproximando do grupo e, quando finalmente chegou, Mauricinho terminou a última frase. Canelinha soltou sua nova risada e ganhou a atenção de todos na roda. Depois de retomar o fôlego, ele perguntou qual era o problema e se eles não tinham gostado na nova risada dele. Foi então que o Mauricinho respondeu “Cara, estou contando aqui da minha avó que está no hospital com câncer.”. Desde então Canelinha começou a pesquisar novas maneiras de chorar.
A esperança de que, com o tempo, Canelinha ficasse menos idiota foi sendo descartada. Mais velho, já na faculdade, ele começou a tender para a esquerda. Não, não estou insinuando que isso é sinal de que ele é idiota. Você precisa ser menos ansioso. Como dizia, ele começou a tender para a esquerda e desenvolver um gosto pelas teorias do comunismo. Resolveu então escrever uma tese relacionando o comunismo com a comunidade de formigas da espécie Ranheira, muito comum no estado de Minas Gerais nas proximidades da cidade de Muriaé. Canelinha acreditava que se a organização social fosse estruturada da mesma forma que as formigas Ranheiras, o comunismo seria infalível. Na sua teoria, ele reforçava que não existia hierarquia entre as formigas. Todas eram iguais e, assim, com direitos iguais na comunidade. Inclusive a formiga principal, que não levava o nome de rainha, pois Canelinha era contra a monarquia. No dia da sua defesa, ele recebeu nota dez da banca avaliadora que considerou o trabalho muito bem escrito e a relação entre comunismo e comunidade de formigas impecável. Todavia, Canelinha acabou abandonando o projeto quando soube por um dos membros da banca que as formigas Ranheiras, assim como as formigas de qualquer outra espécie trabalhavam dia e noite à vida toda.
Uma das coisas que mais afetava o Canelinha por ele ser idiota era o seu senso de compatibilidade. Ele nunca entendia quando uma coisa não era compatível com outra. Ele não conseguia ver a coerência nas situações e entender que certas ações não combinavam com determinados eventos. Isso ficou bem claro quando ele chegou atrasado num encontro da galera em uma churrascaria rodízio. Ao ser perguntado sobre o motivo do atraso, ele disse que perdeu muito tempo almoçando.
Com quase vinte e cinco anos, Canelinha resolveu se aventurar na carreira de pintor. Antes fosse pintando casas, apartamentos e fachadas. Não, ele queria ser pintor artístico e expressar seus sentimentos em telas, quadros e painéis. Ele, de fato, tinha certo talento para o desenho. Infelizmente, não era isso que ele queria. Canelinha queria inovar. Pretendia lançar um novo estilo de pintura. Dizia que se sentia muito atraído pelo estilo de Polok, mas não pretendia imitá-lo. Não queria jogar tinta direto do balde na tela ou respingar a tinta a partir dos pinceis. Canelinha queria inventar a técnica da pintura por arremesso. Ela seria feita com objetos mergulhados na tinta que depois seriam arremessados na tela formando então a arte. Na quarta tela ele desistiu, pois tinha constatado que usar pedras portuguesas não seria uma boa ideia.
Com tantos anos sendo idiota, e mesmo sem saber disso, Canelinha foi ficando com a autoestima abalada. Estava já em um patamar que fazia a carência de outrora por uma risada com identidade parecer uma frescura. E era, né? Ele tinha uma necessidade de se sentir parte das coisas que aconteciam ao seu redor. A falta de histórias significativas em sua vida e experiências marcantes, fez com que ele começasse a desenvolver um cacoete mentiroso. As pessoas contavam um episódio de suas vidas e ele concordava dizendo “Sei bem como é. Passei por isso recentemente e senti na pele.”. Certo dia, a galera estava reunida na casa do Zeca. Quando Canelinha chegou, o Mauricinho estava contando uma história. Todos o ouviam atentamente. Calejado pelo lamentável episódio lá na adolescência, Canelinha esperou o fim da história e a reação do pessoal para, enfim, se aproximar. Quando ele terminou, ninguém riu. Canelinha então percebeu que não era piada e entrou na roda de amigos dizendo seu cacoete mentiroso. O grupo espantado olhou para ele que, antes que pudesse dizer algo, foi questionado pelo próprio Mauricinho como era possível. Canelinha persistiu dizendo que tinha acontecido de verdade com ele. Mauricinho então rebateu “Como aconteceu com você se estou contando que a minha avó acabou de perder a luta contra o câncer essa semana?”.
Pois bem, como dizia, sou da filosofia que se falarmos mal de uma pessoa na ausência dela, não existe coisa alguma de errado. Portanto, vou aproveitar que o Canelinha não está por aqui para dizer uma coisa sobre ele. Eu posso até estar enganado, mas acho que ele nunca gostou da avó do Mauricinho.

Próximo conto da coleção: Artimanhas