Conto anterior da coleção: Idiota, hormonal e clichê
Canelinha
Eu sei que vocês vão me recriminar por
isto, mas tenho os meus motivos. Faz parte do senso comum que falar mal de
outra pessoa é algo deselegante e recriminável. Eu discordo. Ainda mais depois
de saber que Ariano Suassuna também pensava igual a mim. Ele dizia que o
problema não era falar mal da pessoa, mas fazer isso na presença dela. Afinal, criar-se-ia
um clima desagradável. Caso a pessoa não estivesse por perto para ouvir, daí,
sim, podia falar mal à vontade. Até porque é algo revigorante. Palavras dele. E,
agora, minhas também.
O que irei falar é sobre o Canelinha.
Provavelmente vocês não o conheçam, mas eu sim. Convivo com ele desde os oito
anos de idade, época em que ele recebeu esse apelido. Tenho tantos anos de
amizade com o Canelinha que posso dizer com propriedade que ele é um idiota.
Seu nome é Ricardo. No ano em que nos
conhecemos, nossos pais disputavam uma pelada toda terça-feira à noite em um
campo de futebol na região da Penha Circular. Nossos pais costumavam nos levar
e, enquanto jogavam futebol, ficávamos do lado de fora chutando bola um para o
outro. Eventualmente, parávamos o que estávamos fazendo para ficar no alambrado
com os outros adultos da “de fora” assistindo à partida. Como de hábito, esses
adultos adoravam incendiar a partida com gritos de ordem do tipo “Vai!”, “Lança!”, “Chuta!” e por
aí ia. Em outros momentos, para desconcentrar os adversários, eles gritavam
coisas como “Pega!”, “Quebra!”, “Dá no meio dele!”, dentre outros incentivos que deveriam ser
tolerados em debates políticos na televisão. Canelinha, ainda Ricardo na época,
curtia esses momentos e gritava junto com os outros adultos. Como se tratava de
uma criança de oito anos, ele era muito fofinho e ingênuo, logo, tudo que ele
gritava era “Na canelinha! Na canelinha
dele!” e assim surgiu o apelido.
Com o tempo, Canelinha foi deixando de
ser fofinho e ingênuo para então começar a dar sinais de ser idiota. Aos dez
anos, já colecionávamos álbuns de figurinhas. Contudo, para o Canelinha, a
óbvia lógica implícita naquela tarefa parecia complexa. Ele ignorava números e as
coleções. Em sua cabeça, fazia total sentido ir colando as primeiras figurinhas
nas primeiras páginas conforme ia comprando. Quando a primeira página estivesse
completa, ele finalmente começava a colar as novas figurinhas que chegavam na
segunda página e assim por diante. O resultado era caótico, absurdo e, ainda
assim, ele parecia ser incapaz de perceber que algo não fazia sentido ali.
Inclusive quando tinha em seu álbum da Copa do Mundo de 1990 uma seleção da
União Soviética com três louros, dois ruivos, dois orientais, quatro goleiros,
três negros, um Homem-Aranha e uma Ferrari. Como tinha dito, sequer as coleções
ele respeitava.
Já no início da segunda fase do ensino
fundamental, época que era chamada de ginásio também, Canelinha foi se
aprofundando na arte de ser idiota. Ele precisou faltar por uma semana à escola
por um motivo qualquer e, na semana seguinte, quando voltou, pegou várias
matérias pela metade. Uma delas foi história, que estava falando sobre a Segunda
Guerra Mundial. A parte que ele ouviu foi a que dizia sobre as invasões do
exército alemão e a liderança de Hitler. Canelinha ficou fascinado com aquela
personalidade. Achou impressionante a eloquência do fuhrer e sua capacidade de
mobilizar uma população inteira em prol de sua luta. Para ele, Hitler era um
líder nato que deveria ser copiado pelos principais chefes de estado, técnicos
de esportes e gestores de grandes corporações. Eu só soube disso no mesmo dia
que o restante da nossa turma e professora de história, senhora Creuza, também
souberam. Em uma apresentação valendo ponto, ele desenvolveu um longo texto
sobre suas convicções e o leu na frente de todos. Ao final, com a turma ainda
boquiaberta, a senhora Creuza disse que talvez não fosse uma boa ideia que,
particularmente, ele idolatrasse o líder alemão. Quando questionado pelo
Canelinha por qual motivo não deveria fazê-lo, a senhora Creuza respondeu
dizendo “Porque provavelmente, pelo seu
sobrenome Schultzartz, você deve ser judeu.”. Canelinha então se calou e
achou melhor pesquisar sobre as aulas que tinha faltado.
Já no meio da adolescência, uma das
coisas que mais afligia o Canelinha era a sensação de se sentir um estranho
fora do ninho. Como se isso fosse exclusivo dele, não é, não? De qualquer
forma, a sua sensação de exclusão era baseada em um motivo idiota, como era de
se esperar. Ele achava que não tinha uma risada que desse uma personalidade a
ele. Considerava sua risada muito comum e, por isso, não se destacava dentre os
demais. Ainda mais quando o Mauricinho estava por perto. O Mauricinho era um
dos maiores contadores de piadas do colégio. Bastava ele parar em uma roda de
pessoas e as gargalhadas eram ininterruptas. Ocasionalmente, quando estava por
perto, o Canelinha se sentia constrangido de rir, mesmo que fosse uma piada
sensacional. Por isso, decidiu testar várias risadas até achar uma que combinasse
com sua personalidade. Começou com uma risada com os dentes serrados escapando
o ar. Depois, foram tentativas com risadas de bocas escancaradas. As que usavam
as vogais u e o foram rapidamente descartadas porque considerava que
harmonizavam melhor vilões de desenho animado. Tentou imitar risadas famosas,
dentre elas a do Eddie Murphy. Mas não a risada original do ator, mas a da
dublagem da Hebert Richards. Depois de tanto trabalho, achou a sua risada. Ela
revezava as vogais a e i em uma frequência tremida. Finalmente, se sentindo
identificado com o resultado final, Canelinha mal esperava a hora para estrear
sua risada. Foi quando viu uma rodinha com o Mauricinho no meio falando. Lá vem
uma piada das boas, pensou o Canelinha. Ele foi se aproximando do grupo e,
quando finalmente chegou, Mauricinho terminou a última frase. Canelinha soltou
sua nova risada e ganhou a atenção de todos na roda. Depois de retomar o
fôlego, ele perguntou qual era o problema e se eles não tinham gostado na nova risada
dele. Foi então que o Mauricinho respondeu “Cara,
estou contando aqui da minha avó que está no hospital com câncer.”. Desde então
Canelinha começou a pesquisar novas maneiras de chorar.
A esperança de que, com o tempo,
Canelinha ficasse menos idiota foi sendo descartada. Mais velho, já na
faculdade, ele começou a tender para a esquerda. Não, não estou insinuando que
isso é sinal de que ele é idiota. Você precisa ser menos ansioso. Como dizia,
ele começou a tender para a esquerda e desenvolver um gosto pelas teorias do
comunismo. Resolveu então escrever uma tese relacionando o comunismo com a
comunidade de formigas da espécie Ranheira, muito comum no estado de Minas Gerais
nas proximidades da cidade de Muriaé. Canelinha acreditava que se a organização
social fosse estruturada da mesma forma que as formigas Ranheiras, o comunismo
seria infalível. Na sua teoria, ele reforçava que não existia hierarquia entre
as formigas. Todas eram iguais e, assim, com direitos iguais na comunidade.
Inclusive a formiga principal, que não levava o nome de rainha, pois Canelinha era
contra a monarquia. No dia da sua defesa, ele recebeu nota dez da banca
avaliadora que considerou o trabalho muito bem escrito e a relação entre
comunismo e comunidade de formigas impecável. Todavia, Canelinha acabou
abandonando o projeto quando soube por um dos membros da banca que as formigas
Ranheiras, assim como as formigas de qualquer outra espécie trabalhavam dia e
noite à vida toda.
Uma das coisas que mais afetava o
Canelinha por ele ser idiota era o seu senso de compatibilidade. Ele nunca
entendia quando uma coisa não era compatível com outra. Ele não conseguia ver a
coerência nas situações e entender que certas ações não combinavam com
determinados eventos. Isso ficou bem claro quando ele chegou atrasado num
encontro da galera em uma churrascaria rodízio. Ao ser perguntado sobre o
motivo do atraso, ele disse que perdeu muito tempo almoçando.
Com quase vinte e cinco anos,
Canelinha resolveu se aventurar na carreira de pintor. Antes fosse pintando
casas, apartamentos e fachadas. Não, ele queria ser pintor artístico e expressar
seus sentimentos em telas, quadros e painéis. Ele, de fato, tinha certo talento
para o desenho. Infelizmente, não era isso que ele queria. Canelinha queria
inovar. Pretendia lançar um novo estilo de pintura. Dizia que se sentia muito
atraído pelo estilo de Polok, mas não pretendia imitá-lo. Não queria jogar
tinta direto do balde na tela ou respingar a tinta a partir dos pinceis. Canelinha
queria inventar a técnica da pintura por arremesso. Ela seria feita com objetos
mergulhados na tinta que depois seriam arremessados na tela formando então a
arte. Na quarta tela ele desistiu, pois tinha constatado que usar pedras
portuguesas não seria uma boa ideia.
Com tantos anos sendo idiota, e mesmo
sem saber disso, Canelinha foi ficando com a autoestima abalada. Estava já em
um patamar que fazia a carência de outrora por uma risada com identidade parecer
uma frescura. E era, né? Ele tinha uma necessidade de se sentir parte das
coisas que aconteciam ao seu redor. A falta de histórias significativas em sua
vida e experiências marcantes, fez com que ele começasse a desenvolver um
cacoete mentiroso. As pessoas contavam um episódio de suas vidas e ele
concordava dizendo “Sei bem como é. Passei
por isso recentemente e senti na pele.”. Certo dia, a galera estava reunida
na casa do Zeca. Quando Canelinha chegou, o Mauricinho estava contando uma
história. Todos o ouviam atentamente. Calejado pelo lamentável episódio lá na
adolescência, Canelinha esperou o fim da história e a reação do pessoal para,
enfim, se aproximar. Quando ele terminou, ninguém riu. Canelinha então percebeu
que não era piada e entrou na roda de amigos dizendo seu cacoete mentiroso. O
grupo espantado olhou para ele que, antes que pudesse dizer algo, foi questionado
pelo próprio Mauricinho como era possível. Canelinha persistiu dizendo que
tinha acontecido de verdade com ele. Mauricinho então rebateu “Como aconteceu com você se estou contando
que a minha avó acabou de perder a luta contra o câncer essa semana?”.
Pois bem, como dizia, sou da filosofia
que se falarmos mal de uma pessoa na ausência dela, não existe coisa alguma de
errado. Portanto, vou aproveitar que o Canelinha não está por aqui para dizer
uma coisa sobre ele. Eu posso até estar enganado, mas acho que ele nunca gostou
da avó do Mauricinho.
Próximo conto da coleção: Artimanhas