terça-feira, 24 de novembro de 2015

Início... ou fim

Meu prato favorito é língua. Língua defumada com molho madeira, batatas levadas ao forno e feijão manteiga com paio. Depois, em segundo lugar, está fígado acebolado com fritas bem sequinhas, ou com purê, e feijão. Sei que muitos farão careta para pelo menos um dos pratos sem ter provado sequer uma vez na vida. Que pena. Não dá para dizer que algo é ruim sem antes experimentar. Obviamente não preciso comer merda para falar que é ruim. Não vamos generalizar também. Talvez por isso exista o tabu de tentar relações com o mesmo sexo. Quem suportaria o peso de mudar toda a forma de ver um dos principais alicerces da vida antes renegado por pura teimosia? Bem, no meu caso eu concentrei toda a minha coragem provando língua. Acredito que tenha sido emoção suficiente.
Estranhamente, essa teimosia de dizer que algo é ruim sem provar ou que algo é muito bom sem tentar enxergar por outra perspectiva me acompanhou por toda a vida. Talvez esteja sentimental pelo momento, mas o fato é que hoje olho para trás e vejo como insisti em pensamentos teimosos. E como fiz merda na vida também, mas isso fica para outro momento.
Nunca achei que diria isso, mas a Lapa é uma merda. O bairro que tanto frequentei, idolatrei e fiz de quintal da minha vida é a pior coisa que pode existir. Acredito que antes tinha uma imagem tão distorcida porque sempre chegava entorpecido pela euforia da expectativa de mais um dia de total descompromisso com a responsabilidade e, quando a transe eufórica dava sinais de ceder a ponto de me mostrar a realidade, já estava quimicamente tomado pelas coisas de sempre. É como uma criança chegando a um aniversário de algum coleguinha. Aquela empolgação de ter vários amigos para correr aleatoriamente em recreações com regras sem sentido. Com o tempo, você, de tanto suar, vai desidratando, resolve repor calorias consumindo refrigerantes e doces, seu nível de açúcar sobe descontroladamente e você começa a agir como um maníaco. Fica então incapaz de notar que o homem de meia idade fantasiado de super-herói é patético, que você arrancou sapatos de estranhos por pontos imaginários em uma gincana sem valor e depois vai lutar pela vida para ganhar um saquinho com lembranças que, de tão ruins, você sequer ganharia no dia de Cosme e Damião em alguma comunidade carente. É uma furada óbvia, mas você está iludido pelas circunstâncias, não enxerga o todo e se contenta com a felicidade superficial momentânea. Em casa, depois com o corpo recomposto, você olha para aquele monte de porcarias monocromáticas e se pergunta “Céus, o que eu fiz?”. O mesmo vale para mim, só que no dia seguinte. Com um corpo que parece ter sido surrado, usando todo o esforço possível, abria os olhos, olhava ao meu redor e exclamava “Ah, mas que merda!”.
Não bastante, o argumento da criação equivocada de um mito não pode se limitar às condições químicas ludibriadoras das conexões nervosas do cérebro. O fator sazonalidade também é preponderante no que tange o argumento. Sim, porque quando se passa a frequentar um local com mais assiduidade, tudo fica evidente, principalmente os defeitos. É como um namoro. Você encontra a gatinha apenas nos finais de semana. Sexta rola aquele cinema ou barzinho depois do trabalho. Sábado praia com almoço. Domingo, no máximo, um churrasco com amigos. Nem vou citar sexo. Depois retornam aos dias úteis à distância. Não é uma maravilha? Só que um dia se casam, passam a se ver todos os dias, inclusive nos que um dos dois não está disposto, motivo que antes, no namoro, era suficiente para suspender a programação. Mas agora que é tarde. Tudo que não conseguia ver em algumas horas, agora são esfregadas na sua cara sete dias da semana, vinte e quatro horas por dia. Talvez isso faça sentido para mim porque sou um pessimista com casamento, mas a teoria é fundamentada para o caso em questão.
Enfim, o fato é que a Lapa é uma merda. Antro de mendigos e cracudos, frequentado por travestis, putas baratas e traficantes de merda que topam de tudo por qualquer dinheiro. Além de feder a mijo a qualquer hora do dia, o bairro, não necessariamente os profissionais citados. Não me falem sequer de Carnaval! O comércio local é decadente, exceto pelos bares. Não existe uma loja que não tenha prateleiras cheias de poeira com produtos velhos sendo vendidos por um funcionário no mais baixo patamar da carreira profissional, à beira de desistir e entrar para um dos personagens citados no início deste parágrafo. Os prédios são pombais frequentados também por tudo isso que já falei. Tanto que é aconselhável fazer um buraco na parede e na porta principal para passar uma corrente e prender com cadeado. Se as pessoas soubessem o que acontece por aqui, teriam medo de andar de chinelos. Ou sandálias rasteirinhas, como as gatinhas fazem na noite.
Eu sei que é muito amargor por minha parte, só estou vendo o lado ruim, mas, na essência, não há o que contrapor. Estou morando aqui tem seis meses e quero me matar. É sério. Cheguei aqui reconhecendo que era o fundo do poço para mim. Joguei todas as oportunidades que me deram fora. Destruí vínculos profissionais, afastei amigos, esmigalhei relacionamentos amorosos e me transformei em uma bomba relógio. Estou só, sem saúde, falido e tudo que tenho é um caderno que poderia me vangloriar dizendo que é de folhas recicladas, mas na realidade é um caderno velho de páginas amareladas que peguei em uma prateleira encardida de uma papelaria mequetrefe qualquer do bairro. Não tenho o que beber e fumar. Trepar atualmente é um verbo eticamente proibido no meu dicionário. Fui vítima da minha própria frase feita. Achei que estava no fundo do poço, mas sempre aparece um filho da puta para começar a cavar e achar um porão.
Saudades de comer língua, beber a minha cerveja favorita, desmaiar bêbado de vinho no sofá. Daria tudo para ter qualquer livro em minha estante, inclusive aquelas merdas que sempre odiei gratuitamente. Sinto falta de poder me dar ao luxo de tomar café na padaria, almoçar na esquina para não sujar louça (mentira, não sei cozinhar) e ficar andando impaciente pela casa ouvindo as ladainhas de sempre da minha mãe ao telefone. Queria ter minha ex-mulher aqui comigo, a única mulher que me conheceu na totalidade e ainda assim me amou de verdade. Tenho vontade de voltar no tempo, mas também tenho medo de acabar repetindo tudo igualmente. O que eu fiz? Vou te contar desde o princípio. Espere-me apenas atender o interfone, a única pessoa que ainda fala comigo chegou. E pelo tom de voz de quando me ligou, depois de hoje, nem mais ela terei por perto.
Continua em Recomeço