Meu prato favorito é língua. Língua
defumada com molho madeira, batatas levadas ao forno e feijão manteiga com
paio. Depois, em segundo lugar, está fígado acebolado com fritas bem sequinhas, ou com purê, e feijão.
Sei que muitos farão careta para pelo menos um dos pratos sem ter provado sequer
uma vez na vida. Que pena. Não dá para dizer que algo é ruim sem antes
experimentar. Obviamente não preciso comer merda para falar que é ruim. Não
vamos generalizar também. Talvez por isso exista o tabu de tentar relações com
o mesmo sexo. Quem suportaria o peso de mudar toda a forma de ver um dos
principais alicerces da vida antes renegado por pura teimosia? Bem, no meu
caso eu concentrei toda a minha coragem provando língua. Acredito que tenha
sido emoção suficiente.
Estranhamente, essa teimosia de dizer
que algo é ruim sem provar ou que algo é muito bom sem tentar enxergar por
outra perspectiva me acompanhou por toda a vida. Talvez esteja sentimental pelo
momento, mas o fato é que hoje olho para trás e vejo como insisti em
pensamentos teimosos. E como fiz merda na vida também, mas isso fica para outro
momento.
Nunca achei que diria isso, mas a Lapa
é uma merda. O bairro que tanto frequentei, idolatrei e fiz de quintal da minha
vida é a pior coisa que pode existir. Acredito que antes tinha uma imagem tão
distorcida porque sempre chegava entorpecido pela euforia da expectativa de
mais um dia de total descompromisso com a responsabilidade e, quando a transe
eufórica dava sinais de ceder a ponto de me mostrar a realidade, já estava
quimicamente tomado pelas coisas de sempre. É como uma criança chegando a um
aniversário de algum coleguinha. Aquela empolgação de ter vários amigos para
correr aleatoriamente em recreações com regras sem sentido. Com o tempo, você,
de tanto suar, vai desidratando, resolve repor calorias consumindo refrigerantes e doces, seu
nível de açúcar sobe descontroladamente e você começa a agir como um maníaco.
Fica então incapaz de notar que o homem de meia idade fantasiado de super-herói
é patético, que você arrancou sapatos de estranhos por pontos imaginários em
uma gincana sem valor e depois vai lutar pela vida para ganhar um saquinho com
lembranças que, de tão ruins, você sequer ganharia no dia de Cosme e Damião em
alguma comunidade carente. É uma furada óbvia, mas você está iludido pelas
circunstâncias, não enxerga o todo e se contenta com a felicidade superficial
momentânea. Em casa, depois com o corpo recomposto, você olha para aquele monte
de porcarias monocromáticas e se pergunta “Céus, o que eu fiz?”. O mesmo vale
para mim, só que no dia seguinte. Com um corpo que parece ter sido surrado,
usando todo o esforço possível, abria os olhos, olhava ao meu redor e exclamava
“Ah, mas que merda!”.
Não bastante, o argumento da criação
equivocada de um mito não pode se limitar às condições químicas ludibriadoras
das conexões nervosas do cérebro. O fator sazonalidade também é preponderante
no que tange o argumento. Sim, porque quando se passa a frequentar um local com
mais assiduidade, tudo fica evidente, principalmente os defeitos. É como um
namoro. Você encontra a gatinha apenas nos finais de semana. Sexta rola aquele
cinema ou barzinho depois do trabalho. Sábado praia com almoço. Domingo, no
máximo, um churrasco com amigos. Nem vou citar sexo. Depois retornam aos dias
úteis à distância. Não é uma maravilha? Só que um dia se casam, passam a se ver
todos os dias, inclusive nos que um dos dois não está disposto, motivo que
antes, no namoro, era suficiente para suspender a programação. Mas agora que é
tarde. Tudo que não conseguia ver em algumas horas, agora são esfregadas na sua
cara sete dias da semana, vinte e quatro horas por dia. Talvez isso faça
sentido para mim porque sou um pessimista com casamento, mas a teoria é
fundamentada para o caso em questão.
Enfim, o fato é que a Lapa é uma
merda. Antro de mendigos e cracudos, frequentado por travestis, putas baratas e
traficantes de merda que topam de tudo por qualquer dinheiro. Além de feder a mijo a qualquer hora do dia, o bairro, não necessariamente os profissionais citados. Não me falem sequer de Carnaval! O comércio local é decadente, exceto pelos bares. Não existe uma loja
que não tenha prateleiras cheias de poeira com produtos velhos sendo vendidos
por um funcionário no mais baixo patamar da carreira profissional, à beira de
desistir e entrar para um dos personagens citados no início deste parágrafo. Os
prédios são pombais frequentados também por tudo isso que já falei. Tanto que é
aconselhável fazer um buraco na parede e na porta principal para passar uma
corrente e prender com cadeado. Se as pessoas soubessem o que acontece por
aqui, teriam medo de andar de chinelos. Ou sandálias rasteirinhas, como as
gatinhas fazem na noite.
Eu sei que é muito amargor por minha
parte, só estou vendo o lado ruim, mas, na essência, não há o que contrapor.
Estou morando aqui tem seis meses e quero me matar. É sério. Cheguei aqui
reconhecendo que era o fundo do poço para mim. Joguei todas as oportunidades
que me deram fora. Destruí vínculos profissionais, afastei amigos, esmigalhei
relacionamentos amorosos e me transformei em uma bomba relógio. Estou só, sem
saúde, falido e tudo que tenho é um caderno que poderia me vangloriar dizendo que
é de folhas recicladas, mas na realidade é um caderno velho de páginas
amareladas que peguei em uma prateleira encardida de uma papelaria mequetrefe
qualquer do bairro. Não tenho o que beber e fumar. Trepar atualmente é um verbo
eticamente proibido no meu dicionário. Fui vítima da minha própria frase feita.
Achei que estava no fundo do poço, mas sempre aparece um filho da puta para
começar a cavar e achar um porão.
Saudades de comer língua, beber a
minha cerveja favorita, desmaiar bêbado de vinho no sofá. Daria tudo para ter
qualquer livro em minha estante, inclusive aquelas merdas que sempre odiei gratuitamente.
Sinto falta de poder me dar ao luxo de tomar café na padaria, almoçar na
esquina para não sujar louça (mentira, não sei cozinhar) e ficar andando
impaciente pela casa ouvindo as ladainhas de sempre da minha mãe ao telefone. Queria
ter minha ex-mulher aqui comigo, a única mulher que me conheceu na totalidade e
ainda assim me amou de verdade. Tenho vontade de voltar no tempo, mas também
tenho medo de acabar repetindo tudo igualmente. O que eu fiz? Vou te contar
desde o princípio. Espere-me apenas atender o interfone, a única pessoa que ainda fala comigo chegou. E pelo tom de voz de quando me ligou, depois de
hoje, nem mais ela terei por perto.
Continua em Recomeço